"CAUSOS"
OUROPRETANOS
Água encaroçada
Cachoeira do Campo
ainda não havia assumido esses ares de cidade. Portanto, as pessoas
tinham hábitos mais simples, não exigiam muito e coisa e tal. O Zé
de Artur era uma dessas pessoas mais que simples e também chegado a
uma "cangibrina" , pra
cortá a friage, dizia ele. Ao cair da tarde,
depois daquela talagada na vendinha, ele chegava em casa e dava logo a
ordem:
-
Ô muié vigia aí uma água pru mod’eu lavá os pé.
Malvina (ele a chamava de Marvina) apressava-se no atendimento ao
marido, pois ele trabalhava num brejo, a plantar horta, e, os pés
ficavam daquele jeito. O resto do corpo que esperasse o sábado. Não
havia muita exigência como também não havia chuveiro e nem água
encanada. Numa daquelas tardes, o Zé exagerou nas talagadas e, ao
chegar estava "pra lá de Bagdá". Do quarto, onde cuidava
de remendar peças de roupa,a mulher percebeu o estado do marido. Sem
tirar os olhos do trabalho, ela avisou:
- A
água tá numa das panelas no fogão. Avisou e continuou a
"futicar" a agulha naqueles tecidos esgarçados. De repente,
ela ouviu:
-
Ô Marvina, muié disgraçada! Que raio d'água encaroçada é essa q’ocê
me arranjô?
Diante do escarcéu
aprontado pelo Zé, a Malvina não teve outro remédio se não largar
o trabalho e socorrer o marido. Encontrou o Zé com os pés dentro da
bacia cheia de feijão cozido.
O carneiro
Ildefonso e Josefina, de
acordo com os registros de nascimento; Fofonso e Fina, para os amigos
que eram todos os que os conheciam. Depois de muitos anos de vida em
Belo Horizonte, o casal retornara a Cachoeira, onde o Fofonso prestava
serviços na área de contabilidade como contabilista que era e
ajudava muita gente na hora de resolver problemas junto ao serviço
público. Os que mais o procuravam eram pessoas simples do meio rural,
pouco afeitos a lidar com papéis burocráticos, ao contrário do
Fofonso já calejado no ofício. A D. Fina, tão simpática como ele
no trato com todos, atendia quando ele não se encontrava e lhe
repassava as informações dadas quanto ao que desejavam. Numa
daquelas vezes em que se encontrava sozinha, um senhor deixou para que
entregasse ao Fofonso alguns papéis que este já aguardava e
agradeceu por serviços concluídos. Ao sair, ele acrescentou: - diga
ao "seu" Fofonso que na próxima semana eu trago o carneiro.
D. Fina disse que sim e ficou com aquela informação a lhe martelar a
cabeça.
Mais tarde, em conversa com
o marido, ela expôs sua preocupação:
- Ah! Fonso! Fulano pediu
que lhe dissesse que na próxima semana, ele traz o carneiro! Onde
vamos colocar o bichinho? Aqui não tem pasto!
Fofonso soltou uma
gargalhada e explicou:
-Pode deixar Fina. O
carneiro que ele vem trazer não come a grama do jardim. É apenas o
carnê do INSS que eu devo preencher, para que ele possa recolher a
contribuição.
Ah! Qui bom!
Este
"causo"também teve a D. Fina como protagonista. Do alto dos
seus 86 anos, os últimos dez sem a companhia do Fofonso que a
antecedeu na "grande viagem", cuida de tudo sozinha em sua
casa e ainda reserva um tempinho para boas prosas com suas amigas que
não são poucas. E, nas conversas, ela sempre reage com uma
exclamação espontânea às coisas agradáveis narradas por seus
interlocutores: "Ah! qui bom!"
Certa vez, estava a D. Fina a preparar o almoço, enquanto uma amiga
mais íntima conversava com ela. Da boca da mulher as palavras
jorravam ininterruptamente e os assuntos mudavam bruscamente. D. Fina,
ocupada com o almoço, só exclamava: ah qui bom! Numa daquelas
viradas bruscas no rumo da conversa, a mulher narrou algo mais triste
e concluiu:... e a minha mãe morreu. Mecanicamente, a D. Fina
aprovou: - Ah! qui bom!
As tripas do Quincas
Curiosidade interessante é
a relação existente entre algumas localidades ouropretanas e a
cidade de Nova Lima. As populações dos distritos de Glaura (Casa
Branca para os íntimos), São Bartolomeu, Santo Antônio do Leite e o
sub-distrito de Doutor Rocha Lagoa (Cachoeira do Campo) guardam tão
estreita relação com Nova Lima, a ponto de já ter havido uma linha
de ônibus entre Glaura e aquela cidade. Extinta a linha, um caminhão
passou a fazer o mesmo percurso para levar pequenos produtores que
tinham Nova Lima como mercado certo para o que produziam. Ia tudo,
gente e mercadoria, debaixo de uma tolda de lona, na carroceria. Certa
vez, alguma coisa errada na mecânica do veículo, ou à frente do
volante do mesmo, resultou num acidente. Era madrugada escura e o
veículo tombou, misturando passageiros aflitos com galinhas a gritar
dentro de jacás; queijos e frutas a rolar pelo barranco. Balaios se
emborcaram, sacos de aniagem fornidos de coisas se confundiram com
gente espalhada debaixo do caminhão.. Entre ais e gritos por todos os
santos lembrados na hora do aperto, uma mulher gritou pelo seu marido
e ele não respondeu. Imaginou pior sorte para o companheiro e, logo a
seguir, tateou no escuro algo que a apavorou: - Ai
minha Nossa Senhora! O Quincas está com as tripas de fora!
No mesmo instante outra voz explicou na escuridão: não
é tripa não, dona; é a minha lingüiça que se derramou do saco!
Castigado sem saber o porquê
Deste "causo" eu fui testemunha ocular.
Deu-se na escola que, naquele tempo chamava-se Escolas Reunidas Padre
Afonso de Lemos e funcionava no recém-inaugurado prédio da Praça
Bom Despacho (hoje Benedito Xavier), em Cachoeira do Campo. Naquela
época, a disciplina era rígida e as professoras não davam moleza
aos alunos. Mesmo depois das aulas, se alguém aprontasse alguma
traquinagem mais grave, entre a escola e sua residência, no dia
seguinte a professora pedia contas do acontecido. Mesmo assim havia o
que hoje seria a "turma da pesada". Um dos brinquedos mais
comuns entre a garotada era o jogo de birosca (hoje bolinha de vidro)
e, no pátio logo à entrada da escola, reunia-se a turma "bam-bam-bam",
que dominava o pedaço. Somente os integrantes do grupo podiam jogar
birosca naquele espaço. O "papão" (pequeno buraco
semelhante a uma panela, feita no chão, onde as bolinhas deviam cair
antes de o jogador iniciar a marcação de tentos) era quase uma
armadilha para quem cruzasse o pátio. Certo dia, não sei por qual motivo,
estourou uma tremenda briga entre dois jogadores. Ambos eram
considerados "bons no braço", por isso, uma roda de
atiçadores logo se formou em volta. A diretora, alertada pela
gritaria correu ao local e aplicou o castigo na hora. Colocou os dois
briguentos de braços dados, como um casal, e os atiçadores em fila atrás dos pugilistas. Eu e outro garoto assistimos à
coisa um pouco afastados (os fracotes mantinham distância dos
valentões) e, quando vimos a diretora a se aproximar, afastamo-nos
mais para os
fundos do prédio. Foi nesse momento que vimos o Dedeco que, ao
ver-nos com algumas balas nas mãos, apontou a fila e perguntou:
- Para que é aquela fila ? - Sem
pestanejar, respondemos: - É para ganhar balas.
Dedeco correu e entrou no último lugar reservado aos atiçadores que
ficaram uma semana sem recreio.
Nota: no
dia 2 de maio de 2002, Dedeco entrou na fila do céu. Contava 61 anos
de idade e estava a trabalhar quando foi chamado.
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